As contribuições de Mayumi Watanabe de Souza Lima para a produção arquitetônica brasileira da segunda metade do século XX constituem um terreno fértil e ainda pouco explorado pelos estudos acadêmicos da história do ambiente construído. Suas perspectivas práticas e teóricas em torno da participação popular e da industrialização da construção conformaram o fio condutor da pesquisa da qual emerge esse ensaio, que se voltou primordialmente ao período das décadas de 1980 e 1990, derradeiro de uma trajetória tragicamente interrompida em 1994.
Em 1984 Mayumi ingressa no doutorado na Faculdade de Educação da USP. O desenvolvimento da pesquisa, até 1988, corresponde ao período em que assumiu, pela segunda vez, a Superintendência de Planejamento da CONESP (Companhia de Construções Escolares do Estado de São Paulo), durante o Governo Franco Montoro (PMDB). Embora o doutorado tenha se conformado um espaço privilegiado para refletir sobre a própria atuação e o campo no qual esteve imersa profissionalmente desde meados da década de 1960, é nítido seu distanciamento teórico das questões estritamente disciplinares da arquitetura. Sua pesquisa buscava analisar as condições em que ocorrem os processos de produção e consumo dos espaços escolares da rede pública e examinar as possibilidades de sua transformação em instrumento de educação popular.
Seu entendimento da construção como instrumento político e pedagógico conforma o viés dessa abordagem que se volta, enfaticamente, ao processo de produção dessas arquiteturas. Frutos do grau de pressão exercido pelas camadas populares, as construções escolares apresentariam, em maior ou menor escala, os níveis de conhecimento tecnológico e da mão-de-obra, os padrões culturais do Estado e da população e, sobretudo, o grau de concessão que as classes dominantes fazem às classes dominadas. Por outro lado, o segmento revelaria, mais do que outras obras públicas e privadas, as condições objetivas em que se dá a produção de arquitetura no país, envolvendo, neste âmbito: a limitação de recursos públicos, o caráter das propostas educativas e das reivindicações populares, os interesses de grupos econômicos, o clientelismo na ação institucional e o descompromisso de muitos técnicos, entre outras determinantes.
O estudo das construções escolares seria, ainda, meio relevante para compreender aspectos do processo de transição de regime no país, à medida que eram parte dos segmentos de ação governamental onde supostamente estariam sendo aplicadas estratégias de "participação e descentralização" em uma perspectiva de democratização das relações entre Estado e população.
Examinar a aplicabilidade prática de processos autogestionários para a produção destes equipamentos – nos marcos do regime político vigente e sob a perspectiva de transformação pela via do programa democrático-popular em gestação naquele momento –, conformava, então, o objetivo central da pesquisa. Para isso, embasava sua pesquisa, em parte, na análise dos resultados das experiências práticas que vinha desenvolvendo na CONESP, em convênios com as Sociedades de Amigos de Bairro (SAB).
Sob o objetivo de transformar o ato da construção escolar em um instrumento político de autodeterminação das comunidades populares, ou ao menos, instrumento de exercitação de gestão popular, Mayumi reivindica o papel de colaborador e, por vezes, de estimulador, dos técnicos do Estado. A estes caberia a socialização de informações processuais de todos os níveis – técnicas, administrativas, financeiras – em um exercício que se pretendia desalienante, no sentido de permitir a ampliação da percepção social e política das populações atendidas e dos próprios técnicos do Estado. Exigia destes, então, um trabalho sério de procura por linguagens e conteúdos próprios para os fins desejados, o que só se realizaria com a própria população participante.
Para a construção das Escolas Estaduais Bairro de Varginha e Jardim Fortaleza (1983-84), reivindicadas pela SAB, Mayumi implementou, dentro da CONESP, o projeto-piloto de assessoria à gestão e construção da obra pela comunidade local. O trabalho comunitário pago pelo Estado visava a administração direta do recurso público pelas comunidades, a partir de representantes eleitos na esfera da vizinhança, e o contrato temporário de moradores dos bairros para as obras. Em paralelo, acompanhada de uma equipe multidisciplinar, Mayumi deu continuidade aos experimentos metodológicos de exercícios de projetação e percepção dos espaços (da escola, da casa, da cidade...) com as crianças locais. Contraditoriamente, essas construções se inserem no contexto de expansão acelerada da rede de ensino sob critérios quantitativos e de barateamento da produção via redução dos programas funcionais e dos materiais empregados: alvenaria de tijolos, tesoura de madeira e telhas de barro.
Em 1988 o Partido dos Trabalhadores é eleito pela primeira vez à prefeitura de São Paulo e Mayumi, fundadora e militante do partido, assume a diretoria de Edif (Empresa Municipal de Edificações), momento no qual abandona sua pesquisa de doutorado. Com a decisão do Governo Municipal de instalar no município uma fábrica de componentes pré-fabricados para as obras de equipamentos públicos, Mayumi é remanejada, no ano seguinte, à direção do CEDEC (Centro de Desenvolvimento de Equipamentos Urbanos e Comunitários).
A criação do CEDEC correspondeu à tentativa de ampliar o arco de atuação do Município na elaboração e implementação das obras públicas, setor que cresceu durante a prefeitura de Luiza Erundina. O modelo de industrialização adotado e a escolha pela argamassa armada seguiu o acúmulo de experiências precedentes de Lelé em Salvador, no Rio de Janeiro e em Abadiânia. Lelé foi convidado a dirigir o CEDEC e recusou pelo envolvimento simultâneo na implementação dos CIACs do Governo Federal, mas cedeu os desenhos das peças e formas do sistema de equipamentos sociais desenvolvidos na fábrica de equipamentos comunitários (FAEC) de Salvador, a partir dos quais a equipe do CEDEC trabalhou em adaptações.
As construções nos sistemas pré-fabricados desenvolvidos pelo CEDEC corresponderam a somente uma pequena parcela das obras públicas realizadas no período pelo Município. Foram executadas 6 escolas (4 de Educação Infantil e 2 de Primeiro Grau), de um total de 70 construídas pelo Governo Municipal (1989-1992). Junto a elas, duas creches, três obras de canalização de córrego, uma Unidade Básica de Saúde e um Posto de Atendimento Médico, dois Espaços Vivenciais de Trânsito e a Casa de Convivência de Homens de Rua. No eixo de mobiliário urbano foram implementados pontos de ônibus, bancos, lixeiras, bebedouros e totens de informação. Além dos mobiliários destinados ao lazer e recreação das crianças (playgrounds), que formaram um eixo próprio do desenvolvimento de projetos a partir dos elementos pré-fabricados e materiais sucateados.
De acordo com Mayumi, o CEDEC se constituía como setor do Governo Municipal cujas atribuições envolviam a pesquisa e desenvolvimentode soluções adequadas para a melhoria do ambiente urbano, visando estabelecer novos padrões de qualidade, prazo e custo às demandas da população por equipamentos públicos. Na perspectiva da autora, essa distinção fundamentava a decisão da Administração Municipal de assumir diretamente a pesquisa e a produção, embora limitada, de materiais e sistemas construtivos, em detrimento da incapacidade da iniciativa privada em promover alternativas materiais, técnicas e organizacionais para o setor. No entanto, embora tenha formulado objetivos de longo prazo, a experiência do CEDEC teve, ao contrário, curta duração. Decorreram apenas 30 meses entre o início da produção dos componentes e sua implementação em obras e o encerramento de suas atividades, em decorrência da descontinuidade do governo petista.
A produção industrial de componentes e a execução de obras conformam as atividades fins do Centro. Estas atividades, no entanto, seriam norteadas pelas diretrizes políticas da administração que indicavam a necessidade de um segundo grupo de atividades, nos contatos e trabalhos articulados da equipe técnica com as secretarias envolvidas e com a população moradora da área de intervenção. Estas visavam, segundo o Caderno 1 do CEDEC, criar condições para facilitar a organização dos trabalhadores, a participação popular, a garantia de condições favoráveis de trabalho e a descentralização do poder decisório, o que deveria estar acima dos interesses de determinado governo eleito.
Mayumi, em texto publicado postumamente, ao refletir sobre as atribuições da equipe técnica do CEDEC, destaca que os processos de construção industrializada pressupunham alterações na forma de desenvolvimento de projetos, já que as imposições da produção seriada e sua aplicação em escala somam-se às exigências óbvias de qualidade funcional, estética e construtiva. Desta forma, a montagem da equipe técnica deveria permitir um esquema de trabalho contínuo de pesquisa e desenvolvimento de desenhos e de construção, diferindo da concepção tradicional de projeto, elaborado em etapas sequenciais por equipes autônomas. Essas noções de projeto e produção envolvem, em etapas não lineares – considerando as revisões, prototipagem, e adaptações–: o projeto dos sistemas construtivos, dos componentes e correspondentes fôrmas para sua produção, e os projetos arquitetônicos e/ou urbanísticos específicos (do anteprojeto ao executivo). Além disso, também eram atribuições da equipe interna os estudos planialtimétricos e os projetos paisagísticos, gráficos e de comunicação visual.
Ainda que para todas as obras executadas tenham sido realizados projetos específicos que, no caso das escolas, efetivamente abarcam todos estes níveis, é nítido que não houve grande diversidade nas soluções projetuais adotadas. No caso das escolas, o nível elevado de padronização dos projetos de edificação indica a não-participação dos usuários em seu desenvolvimento, o que, talvez, seja uma imposição da própria natureza do vínculo entre projeto e produção exigido pelo sistema de pré-fabricação adotado. Soma-se a isso o tempo relativamente curto no qual esses projetos foram desenvolvidos e implementados, o que impediria, de certa maneira, um processo de projeto mais próximo e atento às opiniões do usuário.
Seguindo a modulação do sistema construtivo, com salas de aula padrão de 6,25x7,5m tanto nas EMEIs quanto nas EMPGs, a disposição do programa e a articulação dos espaços internos das escolas construídas seguem esquemas tipológicos que se repetem com mínimas alterações – salvo o caso da EMEI Vila Nova Curuçá. Maior variedade se expressa nos jogos que se estabelecem entre o interior e o exterior das escolas e no desenho das áreas externas, com especial atenção aos espaços de recreação, ao diálogo com o entorno e ao alinhamento dos acessos aos espaços livres internos. No entanto, mesmo na implantação, na maioria dos casos foi adotada uma solução típica de um grande platô, com taludes para acerto aos limites do terreno.
Também no âmbito da gestão da obra a participação da população foi impossibilitada já que o fluxo de componentes entre fábrica, estocagem e canteiro acaba por determinar os tempos do processo. Além disso, as compras de material no mercado, uma esfera possível de gestão pela comunidade, são bastante limitadas no estágio da montagem (exceção aos caixilhos metálicos, pavimentação dos pisos e concretagem das lajes nas construções de dois pavimentos). A participação da comunidade nas atividades fins do CEDEC, portanto, acabou por concentrar-se no ato da montagem – que não exigia uma mão de obra qualificada –, mediante a contratação temporária de trabalhadores locais, assessorados pela equipe técnica e dos operários de contrato fixo (concursados).
Em contraposição a esta participação apenas como mão-de-obra, objeto de crítica de Mayumi em seu doutorado, buscou-se, a partir do contato com as comunidades por meio de reuniões semanais, da produção de um material de divulgação das obras, bem como do Manual do Usuário (no caso das escolas), compartilhar as informações do processo de viabilização da obra e da construção acabada. Além disso, a aproximação dos técnicos com os moradores buscava discutir aspectos da história dos bairros e da cultura local, da qual emergiram os projetos gráficos e de comunicação visual das escolas. O trabalho de formação política e alfabetização dos funcionários contratados da fábrica, desenvolvido com a pedagoga Marta Grosbaum, também corresponde a esta esfera secundária de atuação do CEDEC.
Quanto à execução das obras, o enfrentamento de entraves burocráticos e a necessidade de agilização dos processos levaram o CEDEC, no último semestre da gestão, a transferir a atribuição da execução à iniciativa privada. Uma atitude pragmática que resultou na redução de prazos e custos finais de ao menos uma creche, um posto médico e uma escola de primeiro grau. Tal movimento correspondeu a um recuo em relação aos pressupostos iniciais das atividades do Centro e deveria ser superada num momento posterior, contando com a continuidade das atividades do CEDEC e de sua constante reavaliação.
De fato, entre 1990 e 1992, buscando superar entraves oriundos da vinculação da unidade produtiva às variações de mercado, a equipe do CEDEC – em colaboração de engenheiros da EESC-USP (onde Mayumi lecionava à época) – desenvolveu inovações tecnológicas à pré-fabricação em argamassa armada. Caso exemplar foi a introdução de fibras de polipropileno na composição da argamassa armada, que possibilitou a eliminação das telas eletrosoldadas, cujo forte aumento da demanda no mercado nacional, influenciado pela implementação dos CIACs, gerara alta inflacionária e indisponibilidade no mercado.
A vitória da direita, anteriormente vinculada à ditadura militar-empresarialnas eleições municipais de 1992, interrompeu, entre diversas outras frentes, as atividades do CEDEC. Essa descontinuidade impossibilitou a realização plena de suas atribuições no âmbito da manutenção dos equipamentos construídos e da reavaliação constante dos sistemas e componentes construtivos. Tal interrupção acabou por limitar as potencialidades da iniciativa, relacionadas às possibilidades de diversificação dessa produção e de sua implementação em maior escala, associada à diminuição dos custos dos equipamentos via aumento da produtividade da fábrica e não à redução de programas e materiais. O curto tempo da experiência também pode ter sido fato relevante para a participação popular limitada, tendo em vista que, a longo prazo, superadas as dificuldades de implementação de um órgão ambicioso, fosse possível dedicar à questão mais fôlego institucional.
Experiências mais recentes e mais bem sucedidas, como a dos CEUs a nível municipal, e da FDE a nível estadual, adotaram caminhos contrários em relação ao modo de produção dos equipamentos do CEDEC, que aglutinava fábrica e escritório com um controle centralizado sobre a maior parte dos processos e variáveis. Optaram pela construção de grandes equipamentos, com superestrutura de pré-moldados pesados em concreto armado, terceirizando as obras às empreiteiras e os projetos a escritórios privados.
Este ensaio é um desdobramento do Trabalho de Conclusão de Curso do autor intitulado “Política, Participação e Industrialização: Teoria e Prática de Mayumi Watanabe de Souza Lima (1984-1992)" entregue em 2020 na Associação Escola da Cidade sob orientação da Prof. Dra. Paula Gorenstein Dedecca.
Referências Bibliográficas
CEDEC/EMURB. Apresentação, Objetivos, Tecnologia . Caderno 1. São Paulo, EMURB, 1991.
CEDEC/EMURB. Atividades desenvolvidas 1990/92. São Paulo, EMURB, 1992. c.
LIMA, Mayumi Watanabe de Souza. Plano de Pesquisa. São Paulo, 1986.
LIMA, Mayumi Watanabe de Souza. Participação e Democracia no Sistema Educacional: o discurso e os limites da prática no planejamento e execução das construções escolares. São Paulo, 1987.
LIMA, Mayumi Watanabe de Souza. Escolha de Material Técnico e Sistemas Construtivos Destinados à Produção de Habitação Popular e de Condições de Habitabilidade. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, São Paulo, v. 12, n. 0, p. 118, 2002.